Dizem que numa tarde qualquer de 16-e-qualquer-coisa Felipe IV da Espanha estava, naquele tédio inquietante que tem a realeza quando não está no fausto e pompa de seu exercício monárquico, debruçado sobre o balcão de seu Real Palácio quando na rua abaixo passou um sujeito rindo desbragadamente com um livro nas mãos. Sua Católica Majestade teria exclamado então: “Ou este homem está louco ou está lendo o Quixote”. Lipe, posso te chamar de Lipe? Lipe, não sei qual seria a opinião áulica do gentil-homem que teve a pachorra de sair correndo pra anotar sua frase e passa-la à história, mas eu tenho cá comigo que Vossa Majestade não está lá muito arrazoado falando assim do tal passante.
Magina aqui comigo, Lipe, que o Quixote vai passar todos esses séculos que separam nós dois e vai chegar um dia a cair no meu colo. Magina mais, Lipe! Magina que eu vou ler, devoradoramente, as aventuras do cavaleiro da Triste Figura e vou ficar rolando no chão de rir. Agora me alcança aqui, Lipe, e veja que eu percebi um tantico mais além nesse tal fidalgo de lança em cabildo, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor.
Não sei você, Lipe, que tem La Mancha aí à sua disposição além de todos esses reinos e terras espalhados pelo mundo, um Império onde o sol jamais se põe, mas euzinho, que tenho pouco mais que uma cidade barulhenta, fico embasbacado que o senhor Alonso Quijano naquele lugar de La Mancha de cujo nome nós não queremos nos lembrar mais seu fiel escudeiro Sancho Pança, se arresolvam a sair por aí numa renovação dos votos da mui nobre ordem dos cavaleiros andantes. Não pela tolice do projeto, Lipe, longe de mim acontecer de pensar tal. Pela maravilha deslumbrante do projeto, Lipe, isso sim.
Pense cá, com toda sua Catolissíssima Majestosa pessoa, que um homem está na sua biblioteca numa casinha marromeno. Tem suas terrinhas, tem seu gado. Vai levando, como dizemos por cá neste século. Empurrando com a barriga, como dizemos cá por este país. Desovando, como dizemos cá pelo meu povo. E fica lá todo que se todo, lendo que se lendo. No meio dessas leituras o tal do homem desembesta a pensar. Pensa daqui, pensa de lá e chega à uma maravilha de conclusão: o mundo precisa de um cavaleiro andante. O tal do homem sabe à custa de não ver, ouvir, nem ter notícia de nenhuns, que os cavaleiros andantes já, ó, chisparam faz é tempo. Mas não se desapega e nem se entorta. Vai se fazer cavaleiro andante. E se faz!
Você que é uma Majestade culta, cheia das leituras diversas, teve o prazer honroso de ler as duas partes genialíssimas do Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha. E com certeza, mais esperto que eu, conseguiu perceber, bem antes e com menos esforço, que o Quixote, assim como o Sancho, sabe que aquilo tudo lá não é o que não é. Eles estão num jogo, Lipe. O Quixote fala bem demais pra ser tido por um doidinho de rua. O homem tá ligado que na verdade ele está representando um papel necessário e cumpre com todas as funções de seu papel. Preciso de gigantes mas num tenho? Que se lasque, vou abater moinhos de vento. O Quixote, Lipe, acima e além da loucura, tem um ideal.
Sabe, Lipe, eu tenho pra mim que foi um pouco o Cervantes e muito o Quixote quem contribui para que o seu Império onde o sol jamais se punha fosse um império onde o sol jamais se pusesse. Hoje, vocês três ficariam abismados com a falta disso: um ideal. As pessoas estão cumprindo minha saudosa aula da terceira série quando eu descobri que os seres vivos: nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. And that’s all folks.
Não estou pedindo que saia todo mundo arremetendo contra moinhos de vento não, Lipe. Porque, com esses bilhões de pessoas fazendo, perderia o glamour além de não ter moinho pra todo mundo. Mas tem muito ventilador aí que pode ser chutado com total eficácia. Um Quixote de quarto e sala que fizesse como o manchego e fosse atrás das suas crenças sem contar quantos dentes perderia era algo que eu pediria a todos. Porém, com uma ressalva brutal, Lipe: um Quixote que saísse da sua biblioteca pra lutar com seus moinhos gigantes, ou ventiladores de teto que fossem, em vez de apenas compartilhar a foto indignadamente numa rede social azulada qualquer.