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O mês em que me tornei uma feminista peluda, por Melissa de Miranda

A Melissa de Miranda é uma grande amiga que eu ainda não conheci, uma daquelas pessoas com quem cruzamos pelo mundo virtual e nos encantamos pela sua inteligência, carisma e incrível capacidade de expressão. Ontem à noitinha ela publicou em seu facebook este texto que eu copio abaixo. Simplesmente INCRÍVEL. Vale a leitura, mesmo que você, leitora, nunca deixe de se depilar.

Este texto começa com a minha vergonha em compartilhar esta foto (abaixo). Minha relutância e pavor – independentemente de quantos artigos feministas já li ou escrevi. E então aquela voz que sussurra baixinho em minha consciência: mas não temos todas nós, mulheres adultas, pêlos?

E decidi: se compartilhar e escrever, talvez outra garota se sinta bem com o seu corpo.

Naturalmente a resposta é que sim. Temos. Mas, em termos de cultura, não. Não temos. Ou não em público, pelo menos. Antes que alguém me venha com a clássica – “cada um faz o que quer” –, já aviso que não é bem assim e vocês sabem que não. Risadas, olhares de nojo e dedos apontados na rua nos dizem que não. Da forma mais grosseira e invasiva possível. Somos piadas para conhecidos, para a família, para estranhos. Eu posso atestar isso. De todas as formas que o meu feminismo incomoda as pessoas à minha volta (“você não vai ser aquelas loucas, chatas, né?”), a principal preocupação é se eu, pelo amor de Deus, vou continuar a me depilar. Porque manter os meus pêlos não é uma opção. Deixar os seus pêlos crescer, aí sim, é ultrapassar todos os limites do aceitável.

Que vergonha. Que horror.

O que me preocupa é que cada vez mais a feminilidade está associada ao que não é natural para as mulheres (todos os pêlos arrancados, a maquiagem o dia inteiro, o cheiro artificial comprado em farmácias). E o que é natural é voltado contra nós [1] – nossos pêlos são motivo de estresse e de vergonha; nossa menstruação é nojenta; nosso corpo pós-parto é grotesco. Quando Simone de Beauvoir disse que não nascemos mulheres e, sim, nos tornamos mulheres, duvido que ela pudesse previr o quão caro isto custaria no século 21. Isto é, semanalmente. Dos nossos bolsos, de todas nós.

A feminilidade não está associada a algo que temos naturalmente. Precisamos comprá-la, constantemente, e então mantê-la. Estou falando de procedimentos (no plural!) que gastam tempo e dinheiro, que nos causam dor, e cuja ausência muitas vezes nos impede de dormir com alguém, de vestir shorts no calor, entrar na piscina ou até de sair de casa. É algo semelhante ao que os homens vivenciam com a impossibilidade de manter-se em determinados empregos e deixar a barba crescer – o que vira sinônimo de desleixo e falta de higiene –, mas em demanda e proporções bem maiores.

Lembra quando vocês ficaram bravos com a moda metrossexual?

Pois são todos os nossos pêlos. Buço, axila, pernas, virilha, rosto, costas, barriga, braço. Junte isso à gordofobia e a uma cultura pesada de valorização feminina pela aparência [2] que já dura séculos e não me parece surpresa alguma o quão intensamente nos odiamos. Não ouvimos nenhuma dizer o contrário [3]. Somos, por natureza, um incômodo a nós mesmas. Temos dez vezes mais [4] distúrbios de alimentação, associados a autoimagem. O quádruplo [5] das tentativas de suicídio, ainda que os homens sejam três vezes mais bem-sucedidos neste campo. Isto são muitas (muitas!) mulheres.

Esta foi a primeira vez em 26 anos que deixei os meus pêlos crescerem e saí de casa sem escondê-los. Começou com uma campanha de saúde – a Armpits4August [6] –, mas se tornou uma jornada de leituras e mais leituras e novas experiências. Descobri coisas muito interessantes pelo caminho e gostaria de compartilhar algumas:

A – AO CONTRÁRIO DO QUE TE DISSERAM, É MAIS HIGIÊNICO!

Pêlos existem em nosso corpo por um motivo. Entre eles, para nos proteger (impedindo que bactérias e suor entrem em nosso canal vaginal, por exemplo), regular a nossa temperatura e afastar o suor da nossa pele. Li o depoimento de um médico que explicava como as bactérias, inclusive as que causam odor, se proliferam melhor na pele depilada. Afinal, criamos ali um ambiente úmido, quente e desprotegido. Agora claro que eu não deveria ter te contado isso, não é? Talvez você economize na farmácia e no consultório e ninguém vai querer isso. Melhor continuarmos escurecendo a pele estressada da nossa axila e gastando dinheiro para nos arrancarem os pêlos do corpo um a um, com cera quente.

B – É UMA QUESTÃO DE GOSTO… MAIS OU MENOS…

O mais curioso foi uma das vezes em que argumentei isso (tópico A) e um cara, provavelmente com todos os seus pêlos intactos (assim como toda a outra metade da população mundial tem), respondeu: “prefiro todas as bactérias do mundo a mulheres peludas”. Uau, quanta consideração! E está aí possivelmente a raiz – see what I just did there? – do problema. A rejeição. Ah, aquele sentimento tão antigo de que só somos felizes e inteiras se temos alguém; ah, aquele medo então de ofender e de perder todas as nossas chances; oh céus, os homens e a nossa solidão. Coitada da Nanda Costa [7] (e a enxurrada de xingamentos que recebeu!).

Tesão, como muitas outras coisas em nossa sociedade, é cultural. Em termos gerais. O que achamos bonito ou feio é algo que – sinto informar a sua falta de originalidade, amigos e amigas – aprendemos através das nossas experiências, o que nos garante certa individualidade, mas mais massivamente graças aos padrões vigentes. E também muda, como tudo na sociedade. Nos anos 80 os pêlos eram (mais) aceitos; nos 90, adotaram uma moda mais discreta; e nos 2000, com a chegada da internet e expansão da indústria pornô, foram banidos e restritos à categoria “fetiches bizarros”. E agora, em pleno ano de 2013, garotos de quinze anos esperam que as suas namoradinhas não tenham um pêlo sequer (eca!), em lugar algum, antes mesmo de enfiar a sua mão (com consenso, pfvr!) calcinha adentro, alguma vez na vida. Roubei esta teoria da incrível Caitlin Moran [8], a propósito.

Aos amigos, por favor, leiam esse artigo [9] do Manual do Homem Moderno. Eu adorei.

Mas agora falando sob uma perspectiva bastante pessoal, me parece mais atraente alguém que controla o próprio corpo e as suas escolhas; sabe aquela autoconfiança e independência realmente sensuais? A meu ver, quem é segura o suficiente para bater de frente com a sociedade é também mais segura na cama e na forma como conduz a sua sexualidade; me parece bem mais instigante ver alguém sem medo de se expor, de tentar algo diferente. E presume-se que, no mínimo, a pessoa já discutiu e leu muito antes de sair por aí sendo contracultural. Está pré-disposta a ter uma cabeça mais aberta. E cada vez mais me atraio por quem quebra as regras e menos por quem segue todas elas sem questionar. Faz sentido?

Outra vantagem é que os meus pêlos fazem a pré-seleção natural por mim. Dos (e das) babacas com quem não quero me envolver.

C – HAIRY MAKES IT HOTTER! (a cama e a ciência comprovam…)

Podemos discutir à vontade. Mas a verdade é esta: pêlos em seu habitat e formato natural não só aumentam a sensibilidade prazerosa – e não a negativa; quantas de nós sentem dor com o atrito [10] nos primeiros dias após a depilação ou quando o pêlo começa a crescer novamente? –, como são os principais responsáveis pela liberação de feromônios. Aquelas partículas mágicas, conscientemente imperceptíveis, que flutuam no ar e fazem outras pessoas quererem transar com você. Se chama natureza – e ela sabe o que está fazendo, ok.

Li duas pesquisas diferentes, durante este mês de agosto, que falavam sobre os efeitos físicos dos feromônios em pessoas vendadas e achei espetacular os resultados. Uma pessoa excita a outra sem qualquer percepção (consciente). E paralelamente, imagino que mulheres esterilizadas façam alguém querer transar com elas tanto quanto plástico. Mas como eu disse antes, tesão é cultural e nós o estamos comprando em sex shops, já que todos os atrativos físicos que natureza nos deu nós, claramente, estamos erradicando.

Google it!

D – TER PÊLO É, POIS É, FEMININO!

Eu sei. Eu sei. Eu sei. Não é fácil se livrar do que você por décadas acreditou ser atraente ou condizente com o fato de que você nasceu com um sistema reprodutor feminino (bingo!) e é mais difícil ainda se livrar da droga do binarismo de gênero (vamos parar de colocar as coisas de meninos numa caixinha e as de meninas em outra? Assista isso, mudou minha vida [11]). Mas pêlos são, de fato, uma coisa de mulher adulta.

E – O FEMINISMO E A LIBERDADE INDIVIDUAL

Ninguém deve te obrigar a nada. Nem a depilar, nem a manter. Como diria Vange Leonel, frase esta constantemente citada por mim, o feminismo é um esforço diário. Esses conceitos (tópico D) estão enraizados dentro de nós e boa parte do processo de desconstrução trata-se de um exercício mental consciente. Não vem da alma, acredite. É discutir. Questionar. Rever. Se colocar fora da sua zona de conforto. E voltar correndo num belo dia de sol – e se depilar por mais três meses de verão no escurinho do seu banheiro – para depois tentar de novo ou nunca mais. Sabe-se-lá! Acontece. Devemos fazer o tanto quanto queremos fazer.

Ninguém deve se sentir obrigada a se depilar. Ou a rejeitar tudo o que não é natural. Gente! Eu sou SUPER a favor das possibilidades e das liberdades individuais. Vamos pintar o cabelo de roxo ou raspar a cabeça, fazer plástica, furar o próprio corpo, tatuar, depilar ou não e o que quisermos. Viva! O que me incomoda é apenas a obrigatoriedade da depilação. A imposição de um único padrão que não seja associado a termos negativos em nossa sociedade – suja, porca, feminista cabeluda e sapatão (sim, sou eu!) –.

Claro que a luta, em termos mais amplos, é para que não sejamos julgadas moralmente ou classificadas por nada de antemão pelo que usamos ou fazemos com o nosso corpo. Mas é aí que se torna importante sermos – e vermos – cada vez mais mulheres diferentes. Os pêlos no meu corpo abrem espaço para outras mulheres se expressarem nas mais diversas maneiras. Não se trata de abdicar da depilação como um todo, se trata de normalizar outras opções. E não só uma (oooh, so boring!).

O FATO É: MULHERES TÊM PÊLOS. Superem isso. Usem os seus com orgulho – ou ao menos, busquem uma relação mais saudável e amorosa (menos repulsiva) com o seu próprio corpo.

UNS LINKS ÚTEIS:

[1] Artigo “Nojenta?”, da Revista TPM:

http://revistatpm.uol.com.br/revista/89/reportagens/nojenta/page-1.html

[2] Artigo “Men and the Sexualization of Young Girls”, do Hugo Schwyzer:

http://goodmenproject.com/ethics-values/men-and-the-sexualization-of-young-girls/

[3] Entrevista “Kate Winslet: I accept my body”, no Belfast Telegraph:

http://www.belfasttelegraph.co.uk/woman/fashion-beauty/kate-winslet-i-accept-my-body-28677609.html

[4] Distúrbios de alimentação e autoimagem, na UOL:

http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=11984&cod_canal=33

[5] Estatísticas de suicídio, no ABC da Saúde:

http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?401

[6] Artigo sobre o “Armpits 4 August”, no The Guardian:

http://www.theguardian.com/lifeandstyle/2013/jul/18/armpits-4-august-body-hair-feminist

[7] Artigo “Nanda Costa salva a Mata Atlântica” sobre depilação, no NLucon:

http://www.nlucon.com/2013/08/nanda-costa-salva-mata-atlantica-da.html

[8] Obra “Como ser mulher” da Caitlin Moran, na Livraria Cultura:

http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=30181875&sid=72222021414866889672967

[9] Artigo “Preconceito dos ‘pseudo-homens’ contra as mulheres peludas”, no MHM:

http://manualdohomemmoderno.com.br/comportamento/nanda-costa-e-o-preconceito-dos-pseudo-homens-contra-as-mulheres-peludas

[10] Vídeo “Teat Beat of Sex: Hair”, no MadAtoms:

http://youtu.be/q-Pk3dYUl5w

[11] Vídeo “Alice Dreger: Is anatomy destiny?”, no TED Talks:

http://www.youtube.com/watch?v=59-Rn1_kWAA

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Bebidas alcoólicas vendidas apenas até as 18h e apenas em uma rede de lojas. Bem vindo à Suécia.

Na Suécia, se você pretende fazer um esquenta em casa antes de ir para a balada – e é bom que faça, porque lá as bebidas alcoólicas são caríssimas – você precisa se preparar com antecedência.

Exemplo de uma loja da rede Systembolaget, controlada pelo governo e única autorizada a vender bebidas alcoólicas na Suécia

No Brasil, estamos acostumados a passar no hipermercado a qualquer hora e comprar uma garrafa de vodka sem maiores problemas. Isso quando não se vai a uma loja de conveniència de um posto de gasolina.

Na Suécia, a realidade é completamente diferente. Desde 1955, o governo detém o monopólio da venda de bebidas alcoólicas (com teor superior a 3,5%), através da rede Systembolaget. Isso vem em sequência a uma série de medidas que, desde 1830, tenta controlar o consumo no país. Até mesmo vinhos e cervejas com teor alcoólico superior a 3,5% são vendidos apenas nesta rede.

A Systembolaget conta com mais de 400 lojas em todo o país, mas controla fortemente o consumo. De segunda a sexta, as lojas funcionam apenas até as 18h. Nos sábados, até as 15h. Todos os produtos são vendidos em embalagens individuais (salvo encomenda anterior, sujeita a justificativa plausível). Apenas pessoas acima dos 20 anos de idade podem comprar bebidas alcoólicas (ainda que, em bares e restaurantes, maiores de 18 anos possam ingeri-las).

Além disso, bebidas alcoólicas são fortemente taxadas (progressivamente, de acordo com o teor alcoólico). Vinhos sofrem sobretaxa de 22,08 coroas por litro (pouco mais de R$7); já a vodca é sobretaxada em 200,56 coroas por litro (quase R$70!).

Em um país com pelo menos seis meses de inverno, com pouquíssima luz natural e temperaturas consistentemente abaixo de zero, o alcoolismo poderia ser um problema grave. Porém, o governo controla o álcool e oferece incentivos a exercícios físicos (todas as empresas são obrigadas a pagar uma bolsa-academia de quase R$700/ano a cada funcionário). O que você acha dessa iniciativa? Você acha que ela seria aceita no Brasil? Que efeito ela teria sobre a sociedade?

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Os 17 melhores inícios de livros

Mas por que 17? – Você deve estar se perguntando.

Porque a lista original tinha 15, e foi publicada pela Revista Bula.

Nos comentários, capturei mais um. E finalizei com o início de livro que mais me marcou até hoje.

Sabe o que isso quer dizer? Que eu quero muitos comentários neste post com os seus inícios de livro favoritos… se isso acontecer, terei que atualizar o post de novo e de novo e de novo…

Literatura nunca é demais. Especialmente de boa qualidade. E para celebrar a semana do Dia Mundial do Livro (23 de abril), vamos à nossa lista!

1. Moby Dick (Herman Melville)

Chamem-me simplesmente Ismael. Aqui há uns anos não me peçam para ser mais preciso —, tendo-me dado conta de que o meu porta-moedas estava quase vazio, decidi voltar a navegar, ou seja, aventurar-me de novo pelas vastas planícies líquidas do Mundo. Achei que nada haveria de melhor para desopilar, quer dizer, para vencer a tristeza e regularizar a circulação sanguínea. Algumas pessoas, quando atacadas de melancolia, suicidam-se de qualquer maneira. Catão, por exemplo, lançou-se sobre a própria espada. Eu instalo-me tranquilamente num barco.

2. Notas do Subsolo (Dostoiévski)

Sou um homem doente… Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para res­peitar a medicina. (Tenho instrução su­fi­ciente para não ser supersticioso, mas sou.) Não, senhores, se não que­ro me tratar é de raiva. Isso os se­nho­res provavelmente não compre­en­dem.

3. Grande Sertão: Veredas (Guimarães Rosa)

‎NONADA. TIROS QUE O SE­NHOR ouviu foram de briga de ho­mem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do cór­rego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mo­cidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, er­roso, os olhos de nem ser — se viu —; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebi­tado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: deter­mi­naram — era o demo.

4. O Complexo de Portnoy (Philip Roth)

Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano na escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada. Assim que tocava o sinal ao fim das aulas, eu voltava correndo para casa, na esperança de chegar ao apartamento em que morávamos antes que ela tivesse tempo de se transformar. Invariavelmente ela já estava na cozinha quando eu chegava, preparando leite com biscoitos para mim. No entanto, em vez de me livrar dessas ilusões, essa proeza só fazia crescer minha admiração pelos poderes dela.

5. A Lua Vem da Ásia (Campos de Carvalho)

Aos 16 anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos a dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pen¬samento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.

6. O Apanhador no Campo de Centeio (J.D. Salinger)

Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que os meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lenga-lenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso. Em primeiro lugar, esse negócio me chateia e, além disso, meus pais teriam um troço se contasse qualquer coisa íntima sobre eles. São um bocado sensíveis a esse tipo de coisa, principalmente meu pai. Não é que eles sejam ruins — não é isso que estou dizendo — mas são sensíveis pra burro.

7. O Amanuense Belmiro (Cyro dos Anjos)

Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis. Florêncio propôs, então, um nono, argumentando que outro copo talvez trouxesse a solução geral. Éramos quatro ou cinco, em torno de pequena mesa de ferro, no bar do Parque. Alegre véspera de Natal! As mulatas iam e vinham, com requebros, sorrindo dengosamente para os soldados do Regimento de Cavalaria. No caramanchão, outras dançavam maxixe com pretos reforçados, enquanto um cabra gordo, de melenas, fazia a vitrola funcionar.

8. A Metamorfose (Franz Kafka)

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intran­quilos, em sua cama meta­morfo­seado num inseto monstruoso. Estava dei­tado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, mar­rom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavel­mente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremu­lavam desamparadas diante dos seus olhos.

9. Dom Casmurro (Machado de Assis)

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.

10. Anna Kariênina (Liev Tolstói)

Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Tudo era confusão na casa dos Oblónski. A esposa ficara sabendo que o marido mantinha um caso com a ex-governanta francesa e lhe comunicara que não podia viver com ele sob o mesmo teto. Essa si­tuação já durava três dias e era um tormento para os cônjuges, para todos os familiares e para os criados. Todos, familiares e criados, achavam que não fazia sentido morarem os dois juntos e que pessoas reunidas por acaso em qualquer hospedaria estariam mais ligadas entre si do que eles.

11. O Ventre (Carlos Heitor Cony)

Positivamente, meu irmão foi acima de tudo um torturado. Sua tor­tura seria interessante se eu a explo­rasse com critério — mas jamais me preocupei com problemas do espírito. Belo para mim é um bife com batatas fritas ou um par de coxas macias. Não sou lido tampouco. A única atração que tive por livro limitou-se à ilustra­ção de um tratado de educação sexual que o vigário do Lins fez o pai comprar para nosso espiritual proveito. Só creio naquilo que possa ser atingido pelo meu cuspe. O resto é cristianismo e pobreza de espírito.

11. Lolita (Vladimir Nabokov)

Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita. Será que teve uma precursora? Sim, de fato teve. Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial.

12. O Jardim do Diabo (Luis Fernando Verissimo)

Me chame de Ismael e eu não atenderei. Meu nome é Estevão, ou coisa parecida. Como todos os homens, sou oitenta por cento água salgada, mas já desisti de puxar destas profundezas qualquer grande besta simbólica. Como a própria baleia, vivo de pequenos peixes da superfície, que pouco significam mas alimentam. Você talvez tenha visto alguns dos meus livros nas bancas. Todo homem, depois dos quarenta, abdica das suas fomes, salvo a que o mantém vivo. São aqueles livros mal impressos em papel jornal, com capas coloridas em que uma mulher com grandes peitos de fora está sempre prestes a sofrer uma desgraça.

 13. Dom Quixote (Miguel de Cervantes)

Desocupado leitor: sem juramento meu embora, poderás acreditar que eu gostaria que este livro, como filho da razão, fosse o mais formoso, o mais primoroso e o mais judicioso e agudo que se pudesse imaginar. Mas não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra seu semelhante. E, assim, o que poderá engendrar o estéril e mal cultivado engenho meu, senão a história de um filho seco, murcho, antojadiço e cheio de pensamentos díspares e nunca imaginados por ninguém mais, exatamente como quem foi engendrado num cárcere, onde toda a incomodidade tem assento e onde todo o triste barulho faz sua habitação?

15. Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez)

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, cons­truídas à margem de um rio de águas diá­fanas que se precipitavam por um lei­to de pedras polidas, brancas e enor­mes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para men­cioná-las se precisava apontar com o dedo.

16. O Grande Gatsby (F. Scott Fitzgerald)

Quando eu era mais novinho, e mais vulnerável, o meu pai deu-me um determinado conselho que ainda hoje me anda às voltas na cabeça. – De cada vez que te apetecer criticar alguém – disse-me – lembra-te sempre que nem toda a gente neste mundo gozou algum dia das vantagens que tu tens tido. E mais não disse. Mas fomos sempre invulgarmente comunicativos, se bem que: de modo algo reservado, e percebi que ele queria dizer muito mais do que disse.

17. (O meu favorito) As intermitências da morte (José Saramago)

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia. Sangue, porém, houve-o, e não pouco.

E quais são os seus inícios de livro favoritos? Coloque nos comentários!

 
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Inaugura-se hoje o MAR – Museu de Arte do Rio, com peças de Aleijadinho a Tarsila do Amaral

Hoje, é inaugurado o tão esperado MAR – Museu de Arte do Rio.

Com uma das mais vastas e impressionantes coleções da América Latina, o museu fica na Praça Mauá, na região central da cidade, e promete recolocar o Rio de Janeiro no centro das atenções do país no cenário cultural (que ao menos nas últimas décadas ficava limitado a São Paulo, com seus muitos museus de arte).

O projeto arquitetônico do MAR é do escritório carioca Bernardes + Jacobsen. O complexo do museu engloba 15 mil metros quadrados e inclui oito salas de exposições e cerca de 2.400 metros quadrados, divididos em quatro andares; a Escola do Olhar e áreas de apoio técnico e de recepção, além de serviços ao público.

Os dois prédios que formam a instituição serão unidos por meio de uma praça, uma passarela e cobertura fluida, em forma de onda – o traço mais marcante da caligrafia dos arquitetos – transformando-os em um conjunto harmônico.

O museu terá, a partir de amanhã, quatro diferentes exibições:

Rio de Imagens: uma paisagem em construção descortina um olhar sobre a representação da cidade ao longo de quatro séculos. A partir de cerca de quatrocentas peças — da cartografia ao vídeo, passando por pintura, gravura, desenho, fotografia, escultura e objetos de design —, a exposição enfoca a criação de um imaginário sobre a cidade, seus desdobramentos e transformações.

Entre os mais de sessenta artistas participantes, estão nomes formadores da arte brasileira, como Burle Marx, Castagneto, Dall’Ara, Di Cavalcanti, Facchinetti, Goeldi, Iberê Camargo, Ismael Nery, Lívio Abramo, Manabu Mabe, Pancetti, Segall, Tarsila, Taunay, Thimóteo da Costa, Vieira da Silva, Vinet e Visconti, juntamente com representantes de destaque da arte contemporânea.

O Colecionador:

Imagine ver reunidos 8 movimentos artísticos de uma só vez, como numa sinfonia de cores e formas.  É o que você irá encontrar na exposição O COLECIONADOR: o modernismo, o surrealismo, a pintura primitiva, a abstração informal, a abstração construtiva, a nova figuração, a pintura russa, a pintura chinesa fazem parte do precioso acervo guardado por Jean Boghici.

Jean fundou a Relevo, uma das primeiras galerias de arte do Rio,  em 1961. A partir daí, ele tornou-se também colecionador. Só que diferente dos demais: ele coleciona para si e para os outros, ajudando a formar as principais coleções do país e trazendo artistas e tendências internacionais para o Brasil.

O COLECIONADOR começa com obras-ícones do século 20 que permearam  a Semana de Arte Moderna de 1922 e que, a partir daí, formaram o gosto artístico de cada década. São cerca de 150 obras de uma centena de artistas: os internacionais Fontana, Calder, Max Bill, Morandi, Kandinsky… e ainda o melhor de  Di Cavalcanti, Tarsila, Rego Monteiro, Guignard, Maria Martins.

Vontade Construtiva na Coleção Fadel dá continuidade à participação da família Fadel no debate cultural brasileiro oferecendo ao público a experiência de sua coleção. A exposição apresenta caminhos do ideário construtivo configurados no Brasil, por pesquisas individuais e movimentos coletivos, desde as primeiras aproximações das vanguardas artísticas europeias nas décadas iniciais do século XX, quando a geometria era usada como indício da razão humana e modo de ordenação da realidade, até os seus desdobramentos entre os anos 1960 e 1980, quando o experimentalismo incorporou a questão sociopolítica, o conceitualismo e a revisão do modernismo.

O abrigo e o terreno inaugura o projeto Arte e sociedade no Brasil, dedicado à atuação da arte brasileira no campo da alteridade e das relações sociais. A exposição reúne artistas e iniciativas de diversas regiões em torno de uma questão que – dadas as reformas urbanísticas que hoje transfiguram o Brasil, principalmente o Rio de Janeiro – se faz especialmente urgente: as concepções de cidade e as forças que se aliam e se conflitam nas transformações urbanísticas, sociais e culturais do espaço público/privado. Entrecruzando distintos horizontes políticos e estéticos – como a ideia de cidade do homem nu de Flávio de Carvalho (1930), a constatação de uma cidade de casas fracas (Clarice Lispector em O Mineirinho, 1962), o projeto de urbanização da favela Brás de Pina (escritório Quadra, década de 1960) ou a atuação de artistas (2003-2007) na Ocupação Prestes Maia, em São Paulo –, a mostra problematiza a propriedade, a posse e o usufruto dos espaços sociais –o terreno – e os modos como produzem política e subjetividade, do direito à habitação ao desejo de abrigo. Concebida como um laboratório de diálogos e antagonismos que percorre o século XX e invade a contemporaneidade, O abrigo e o terreno inclui ainda uma programação de atividades com intervenções, debates, palestras e publicações.

Deu vontade de conhecer?

O MAR ficará aberto de TERÇA a DOMINGO e feriados, apenas das 10h às 17h, e a abertura para o público será no dia 5 de março.

A entrada custará R$ 8, e estudantes de escolas particulares e universitários têm direito a meia-entrada.

Estudantes da rede pública (básica e fundamental), idosos acima de 60 anos e professores da rede pública têm entrada gratuita.

Ah, e às terças-feiras (exceto feriados, claro), todos entram de graça.

*post com informações do site oficial do MAR.

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SESC está na capa do The New York Times. Saiba o porquê.

Na última terça-feira, o modelo brasileiro de promoção da cultura através de serviços como o SESC foi destaque na capa do jornal americano “The New York Times”. Para ler a reportagem original, clique aqui.

SESC Pompeia, em São Paulo. Edifício foi projetado por Lina Bo Bard.

Do blog Radar Econômico, do Estadão:

Enquanto organizações culturais em todo o mundo têm que cortar programas para se adaptar à redução das receitas, Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc de São Paulo, vê seu orçamento aumentar 10% ou mais a cada ano, “o que o torna invejado por seus pares”, afirmou o “Times”.

Isso acontece porque o Sesc, uma entidade privada, recebe de empresas do comércio e dos serviços uma taxa compulsória de 1,5% sobre a folha de pagamento. Numa época em que o emprego com carteira assinada não para de subir, o orçamento do Sesc também não para de crescer.

“O Sesc é um modelo maravilhoso que nós deveríamos ter no mundo inteiro”, disse ao “New York Times” a produtora cultural Nan van Houte, atualmente diretora do Instituto de Teatro da Holanda e ex-presidente da International Network for Contemporary Performing Arts.

“Integrar tudo, ter teatros, piscinas, bibliotecas, restaurantes, workshops e museus, tudo junto, é [uma ideia] muito inteligente. Isso faz com que a cultura se torne parte do dia a dia, e não uma coisa à parte”, afirmou Van Houte.

O “Times” aproveita para contar a história do chamado “sistema S”, uma iniciativa dos industriais e comerciantes para tentar evitar que seus funcionários aderissem ao comunismo.

O sistema S

alcides_leite01.jpgA notícia do “Times” foi sugerida ao Radar Econômico pelo professor de economia Alcides Leite (foto ao lado), colaborador deste blog. Abaixo, ele explica o sistema S.

Sistema S preenche vazio deixado pelo poder público

O sitema S é composto por diversas entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que são mantidas por contribuições específicas autorizadas pela Constituição Federal. São as chamadas contribuições de interesse das categorias profissionais ou econômicas.

As principais entidades são: Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio), Sesc (Serviço Social do Comércio), Sescoop (Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo), Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), Sesi (Serviço Social da Indústria), Sest (Serviço Social de Transporte), Senat (Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte) e Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).

As contribuições que financiam estas instituições incidem sobre a folha de pagamento das empresas pertencentes à categoria correspondente.

O sitema S tem recebido grande apoio da sociedade devido aos bons serviços que vem prestando. O Sesc tem vários centros culturais, o mais conhecido é o Sesc Pompéia, obra da arquiteta Lina Bo Bardi. Estes centros preenchem o vazio deixado pelo poder público na área de lazer e entretenimento. Em São Paulo, milhares de pessoas frequentam os Sescs no fim de semana. As instalações são modernas, limpas e confortáveis, contrastando com as intalações culturais da prefeitura que carecem de manutenção.

O sistema S é uma inovação, garantida pela Constituição, que tem servido de modelo para outros países, inclusive os mais desenvolvidos.

Com o crescimento do número de trabalhadores com carteira assinada, a receita das entidades do sistema S têm crescido acima do crescimento do PIB. Estas receitas não podem ser contingenciadas pelo governo, como são contingenciadas as receitas dos Ministérios. Desta forma o Sistema S escapa da burocracia e dos desperdícios comuns no serviço público.

Embora haja um certo corporativismo e risco de corrupção no sistema S, a população, sobretudo os mais jovens, acredita que a relação custo/benefício do sistema é positiva.

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